quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Literatura de Olavo Bilac! Outubro!

obra deOlavo Bilac


Livro:CONTOS PARA VELHOS
I
OS ÓCULOS
O velho e austero doutor Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, tem uma espinhosa missão a cumprir junto da pálida e formosa Clarice... Vai examiná-la: vai dizer qual a razão da sua fraqueza, qual a origem daquele depauperamento, daquela triste agonia de flor que murcha e se estiola.
A bela Clarice!... É casada há seis meses com o gordo João Paineiras, o conhecido corretor de fundos, — o João dos óculos —, como o chamam na Praça por causa daqueles grossos e pesados óculos de ouro que nunca deixam o seu forte nariz de ventas cabeludas. Há seis meses ela mingua, e emagrece, e tem na face a cor da cera das promessas de igreja — a bela Clarice. E — ó espanto! — quanto mais fraca vai ficando ela, mais forte vai ficando ele, o João dos óculos, — um latagão que vende saúde aos quilos. Assusta-se a família da moça. Ele, com seu imenso sorriso, vai dizendo que não sabe... que não compreende... porque, enfim, — que diabo! — se a culpa fosse sua, ele também estaria na espinha...
E é o velho e austero Dr. Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, um poço de ciência e discrição, quem vai esclarecer o mistério. Na sala, a família ansiosa espia com rancor a gorda face do João impassível. E na alcova, demorado e minucioso exame continua.

Já o velho doutor, com a cabeça encanecida sobre a pele nua do peito da enferma, auscultou longamente os seus pulmões delicados: já, levemente apertando entre os dedos aquele punho macio e branco, tateou o pulso, tênue como um fio de seda... Agora, com o olhar arguto, percorre a pele da bela Clarice — branca e cheirosa pele — o colo, a cinta, o resto... De repente — que é aquilo que o velho e austero doutor percebe na pele, abaixo... abaixo... abaixo do ventre?... Leves escoriações, quase imperceptíveis arranhaduras avultam aqui e ali vagamente... nas coxas...
O velho e austero doutor Ximenes funga uma pitada, coça a calva, olha fixamente os olhos da sua doente, toda alvoroçada de pudor:
- Isto que é, filha? Pulgas? Unhas de gato?
E a bela Clarice, toda de confusão, enrolando-se no penteador de musselina como n’uma nuvem, balbucia, corando:
— Não! Não é nada... não sei... isto é... talvez seja dos óculos do João...
II
COMO OS CÃES
— Não é possível, senhora! — dizia o comendador à esposa — não é possível!
— Mas se eu lhe digo que é certo, seu Lucas! — insistia a D. Teresa — pois é mesmo a nossa filha quem m’o disse!
O comendador Lucas, atônito, coçou a cabeça:
— Oh! senhora! mas isso é grave! Então o rapaz já está casado com a menina há dois meses e ainda...
— Ainda nada, seu Lucas, absolutamente nada!
— Valha-me Deus! Enfim, eu bem sei que o rapaz, antes de casar, nunca tinha andado pelo mundo... sempre agarrado às saias da tia... sempre metido pelas igrejas.
— Mas — que diabo! — como é que, em dois meses, ainda o instinto não lhe deu aquilo que a experiência já lhe devia ter dado?! Enfim, vou eu mesmo falar-lhe! Valha-me Deus!
E, nessa mesma noite, o comendador, depois do jantar, chamou à fala o genro, um moço louro e bonito, dono de uns olhos cândidos...
— Então, como é isso, rapaz? tu não gostas de tua mulher?
— Como não gosto? Mas gosto muito!
— Tá tá tá... Vem cá! que é que tu lhe tens feito, nestes dous meses?
— Mas... tenho feito tudo! converso com ela, beijo-a, trago-lhe frutas, levo-a ao teatro... tenho feito tudo...
— Não é isto, rapaz, não é somente isso! o casamento é mais que alguma cousa! tu tens de fazer o que todos fazem, caramba!
— Mas... não entendo...
— O´ homem! tu precisas... ser marido de tua mulher!
— ... não compreendo...
— Valha-me Deus! tu não vês como os cães fazem na rua?
— Como os cães? ... como os cães?... sim... parece-me que sim...
— Pois, então? Faze como os cães, pedaço de moleirão, faze como os cães! E não te digo mais nada! Faze como os cães...!
— E, ao deitar-se, o comendador disse à esposa, com um risinho brejeiro:
— Parece que o rapaz compreendeu, senhora! e agora é que a menina vai ver o bom e o bonito...
*
* *
Uma semana depois, a Rosinha, muito corada, está diante do pai, que a interroga. O comendador tem os olhos esbugalhados de espanto:
— Que, rapariga? pois então, o mesmo?
— O mesmo... ah! é verdade! houve uma coisa que até me espantou... ia-me esquecendo... houve uma cousa... esquisita...
— Que foi? que foi? — exclamou o comendador — que foi?... eu logo vi que devia haver alguma cousa!
— Foi uma cousa esquisita... Ele me pediu que ficasse... assim... assim... como um bicho... e...
— E depois? e depois?
— E depois... depois... lambeu-me toda... e...
— ...e?
— ... e dormiu!
III
O LUAR

Insone, a moça Luísa
Salta do leito, em camisa...
Verão! verão de rachar!
Calor! calor que devora!
Luísa vai dormir fora,
Ao luar...

Ardente noite estrelada...
Entre as plantas, descansada,
Põe-se Luísa a roncar.
Dorme toda a Natureza...
E que esplendor! que beleza
No luar!

Olha-a o luar com ciúmes...
E sabem vivos perfumes
Do jardim e do pomar:
E ela, em camisa, formosa,
Repousa, como uma rosa,
Ao luar!

Mas alguém (um fantasma ou gente?)
Chega-se prudentemente,
Para o seu sono espreitar...
- Alguém que, ardendo em desejo,
Lhe põe nos lábios um beijo,
Ao luar...

Ela dorme... coitadinha!
Nem o perigo adivinha,
Pobre! a dormir e a sonhar...
Sente o beijo... mas parece
Que é um beijo quente que desce
Do luar...

A lua (dizem-no os sábios...)
Também tem boca, tem lábios,
Lábios que sabem beijar.
Luísa dorme, em camisa...
Como é formosa a Luísa
Ao luar!

Vão depois correndo os meses,
Entre risos e revezes...
- Começa a moça a engordar...
Vai engordando, engordando...
E chora, amaldiçoando
O luar...

Já todo o povo murmura
E, na sua desventura,
Ela só sabe chorar;
Chora e diz que não sabia
Que tanto mal lhe faria
O luar...

O pai, que é homem sisudo,
Homem que percebe tudo,
Pergunta-lhe a praguejar:
" Que é que tu tens, rapariga?!"
E ela: " Eu tenho na barriga...
O luar!"

IV
A ENGUIA
Ao alvorecer, na pequenina aldeia, à beira-mar, padre João, ainda estremunhado de sono, vai seguindo a praia branca, a caminho da igrejinha, que parece ao longe, clara e alegre, levantando no nevoeiro a sua torre esbelta. Lá vai o bom pároco dizer a sua missa e pregar o seu sermão de quaresma... Velho e gordo, muito velho e muito gordo, padre João é muito amado de toda a gente do lugar. E os pescadores que o vêm, vão deixando as redes e vão também seguindo para a igreja. E o bom pároco abençoa as suas ovelhas, e vai sorrindo, sorrindo, com aquele sorriso todo bondade e todo indulgência... À porta da igreja, a Sra. Tomásia, velha devota que o adora, vem ao encontro dele:
— Padre João! Aqui está um regalo que lhe quero oferecer para o seu almocinho de hoje...
E tira do cabaz uma enguia, uma soberba enguia, grossa e apetitosa, viva, remexendo-se.
— Deus te pague, filha! — diz o bom padre, — e os seus olhos fulguram, cheios de júbilo e gula. E segura a enguia, e vai entrando com ela na mão, seguido da velha devota. Que bela enguia! e padre João apalpa voluptuosamente o peixe...
Mas já aí vem o sacristão. A igreja está cheia... A missa vai começar... Que há de fazer o padre João da sua formosa enguia? Deixá-la ali, expô-la ao apetite do padre Antônio, que também é guloso? Padre João não hesita: levanta a batina e com um barbante amarra a enguia em roda da cintura.
A missa acaba. Padre João, comovido e grave, sobe ao púlpito rústico da igreja. E a sua voz pausada começa a narrar a delícia da abstinência e das privações: é preciso amar a Deus... é preciso evitar as torpezas do mundo... é preciso fugir das tentações da carne... E o auditório ouve com recolhimento a palavra suave do seu bom pároco.
Mas, de repente, que é aquilo? Os homens abrem os olhos espantados; remexem-se as mulheres, levantando curiosamente os olhares para o púlpito... É que, na barriga do padre João, debaixo da batina, alguma coisa grossa está bolindo... E já na multidão de fiéis correm uns risinhos abafados...
Padre João compreende. Pobre pároco! pobre pároco atrapalhado! cora até a raiz dos cabelos, balbucia, fica tonto e confuso. Depois, cria coragem e, vencendo a vergonha, exclama:
— Não é nada do que pensais, filhas! não é carne! é peixe! é peixe! não é carne!...
E sacode no ar, com a mão tremula, a enguia da senhora Tomásia...
V
O PARAÍSO


A pálida Ramona
É uma formosa dona,
Moça e cheia de encantos:
Tem a graça e a malícia do Demônio...
E, aos vinte anos, uniu-se em matrimônio
Ao Chilperico Santos.

Ornou-lhe a fronte de gentis galhadas...
E, quando ele, entre as gentes assustadas,
Passava assim, — que sustos e que espantos!
Por fim, morreu... foi pena!
- E a viúva, serena,
Casou de novo... com Silvério Santos.

Fez o mesmo ao segundo que ao primeiro,
E, louca, ao mundo inteiro
Andava namorando pelos cantos...
Ele morreu. E a pálida senhora,
Serena como outrora,
Casou... com Hermes Santos.

Fez ao terceiro o mesmo que ao segundo...
Depois dele, casou com Segismundo
Santos... Depois, sem lutos e sem prantos,
Sem se lembrar dos pobres falecidos,
Foi tendo por maridos
Uns onze ou doze Santos!
............................................
Ninguém jamais teve maridos tantos!
Mulher nenhuma teve menos siso!
E, por ter enganado a tantos Santos,
Quase, com seus encantos,
Converteu num curral o Paraíso...

Nenhum comentário:

Postar um comentário